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Sun 5 Jun 2016 3:50PM

FUNDAMENTOS DA GESTÃO DE CRISES

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FUNDAMENTOS DA GESTÃO DE CRISES

Na última ANAPIRATA, deliberamos definitivamente pela criação desse cargo, elegendo duas pessoas para ocupar o mesmo. O cargo foi inspirado numa função chamada "Ombudsman/Ombudskvinna", sendo "ombud" uma palavra do sueco para falar de representante, agente, alguém que fala em nome de outras pessoas, advoga por elas ou as representa (e "man" = "homem", "kvinna" = "mulher"). Em 1713, o rei sueco Karl XII estava em exílio e precisava de alguém que atuasse em seu lugar em termos de garantir que as pessoas atuassem no âmbito judiciário o fizessem de acordo com as leis, por exemplo. Criou-se o cargo de "Högste Ombudsmannen", Supremo Ombudsman, que posteriormente se tornou o Chanceler de Justiça, função que envolvia também a observância das leis, e não um poder judiciário. Além disso, o Chanceler poderia fazer coisas como receber reclamações sobre a administração estatal e aconselhar o governo em questões legais.

O conceito de "Ombudsman/Ombudskvinna" trazido para o Partido Pirata aqui no Brasil, no entanto, está mais próximo do que é usado em instituições e empresas do que o usado na política em geral. Nesse último contexto, o cargo ainda remete à observância das leis mas o foco passa ser mais nas pessoas cidadãs e na fiscalização de ações irregulares de governos. Já no contexto empresarial, a atuação da pessoa exercendo esse cargo gira mais em torno da resolução de conflitos e disputas. A ideia é que seja uma pessoa que vá agir de forma neutra e por isso mesmo não pode possuir outras funções no mesmo ambiente organizacional para evitar conflito de interesses.

Mais quais as funções da Gestão de Crises (GC) definidas em nosso estatuto? O artigo 51 é o que dá a definição principal do cargo:

I – Instaurar, monitorar e fiscalizar a condução de procedimentos disciplinares, nos termos deste Estatuto;
II – Estipular, cumprir e fazer cumprir os prazos para a abertura e conclusão de procedimentos disciplinares;
III – Instaurar e conduzir procedimentos de mediação e arbitragem de conflitos internos em todas as instâncias e níveis da estrutura partidária, de acordo com princípios e regras legais e estatutárias aplicáveis.
IV – Apresentar, nos meios oficiais de consulta do Partido, relatórios periódicos sobre sua atuação na mediação e gestão de conflitos e sobre o andamento das soluções adotadas;
V – Buscar junto aos Grupos de Trabalho do Partido e outras instâncias consultivas a assessoria técnica que julgar necessária para realizar suas incumbências;
VI – Arbitrar soluções para situações de crise que não envolvam ilícitos, ilegalidades ou violações estatutárias, desde que a mesma não viole princípios estatutários;
VII – Atuar como custos legis em Comissão Julgadora, oferecendo denúncia contra infratores das normas estatutárias e elaborando pareceres detalhados referentes à conduta das pessoas denunciadas.
VIII – Decidir sobre a instauração de novo procedimento a partir da consideração de fatos novos desconhecidos no curso de procedimento disciplinar já transitado em julgado;
IX – Auxiliar a Coordenação Nacional no exercício de sua atribuição deliberativa sobre os casos omissos deste Estatuto.

A fiscalização da aplicação de normas e a mediação e arbitragem de conflitos são relacionadas às duas concepções de "Ombudsman/Ombudskvinna" acima mencionadas. Dado que o GTJ pode exercer no cotidiano do partido a função de fiscalização de forma mais adequada, o foco da Gestão de Crises acaba sendo mais na resolução de conflitos e na atuação em Comissões Julgadoras. A mediação interna parece ter sido um dos motivos mais fortes para a criação do cargo em nosso estatuto, principalmente com o intuito de conter danos causados por membros do partido e evitar um excesso de exposição de problemas internos. Se vamos confiar na narrativa mais corrente sobre um dos fracassos do Partido Pirata na Alemanha, esse tipo de exposição foi causa de uma queda considerável na credibilidade do partido. Além disso, não foram poucas as pessoas que se aproveitaram do péssimo hábito de membros do partido discutirem seus problemas em grupos abertos de Facebook para provocar de forma oportunista ainda mais danos à imagem do partido e de pessoas envolvidas. Por outro lado, a GC, desde sua criação por aqui, não parece ter se preocupado minimamente com essas questões, tendo atuado mais nas Comissões Julgadoras, focando mais no processo disciplinar do que na mediação de conflitos.

Sendo assim, proponho três eixos de fundamentação da atuação de uma Gestão de Crises para o Partido Pirata no Brasil:

1) ESCUTA

Parece imprescindível para o trabalho da GC a disposição a uma escuta parcialmente semelhante à que Freud apresentou em 1912 para profissionais da saúde. O que seria interessante aqui é a abertura e inclinação a escutar as pessoas e suas questões mantendo a "atenção flutuante", sem focar em algum trecho do que é relatado, elaborando uma interpretação já disponível para emitir um diagnóstico apressado da situação. Desconsideradas as diferenças de aplicação dessa ideia, é preciso reconhecer que não é possível a mediação de conflitos, principalmente dentro de uma abordagem restaurativa, sem uma escuta nesse sentido. A GC não deve se prestar ao trabalho de caçar motivos para punir pessoas, mas buscar entender os conflitos e as partes envolvidas, escutá-las até onde for possível, e a partir disso apresentar sugestões sobre como resolver os conflitos. Para isso, o auxílio de profissionais da área da saúde mental que, por conta de sua própria atuação profissional e formação, possuem treinamento e disposição para abrir seus ouvidos às questões trazidas pelas pessoas sem incorrer em julgamentos mentais prévios a partir de suas próprias crenças políticas, religiosas etc.

2) CONTENÇÃO DE DANOS

Como já dito, a GC foi pensada em parte para diminuir o impactos negativos interno e externo causados por conflitos entre pessoas associadas ao partido. No entanto, isso parece não ser possível sem que haja espaços reservados para a atuação da GC. Conferências por vídeo e áudio com as pessoas que procurem essa instância do partido devem ser a regra para possibilitar uma escuta razoável. A GC não deve, sob hipótese alguma, intervir em discussões em espaços públicos sob a pena de acabar alimentando conflitos nos mesmos. Por outro lado, deve-se evitar a todo custo a proteção da "marca", do nome e da instituição acima das pessoas. Não são poucas as organizações que afundam tentando proteger sua imagem de forma desumana, silenciando e esmagando minorias no processo, deixando pessoas desamparadas dentro da própria organização e perdendo completamente de vista seus próprios princípios. A única credibilidade que o Partido Pirata e sua GC devem valorizar é a que surge involuntariamente a partir da ação coerente com seus princípios fundamentais, marcados em estatuto como cláusulas pétreas. Uma política de contenção de danos também deve privilegiar a solução de conflitos antes que eles escalem em proporção e alcance, e é fundamental que se evite que esses conflitos acabem em tribunais marcados pela nossa profunda injustiça e seletividade penal.

A sociedade norueguesa, por exemplo, mesmo funcionando com tribunais e prisões e polícias como a nossa, dispõe de mecanismos de mediação de conflitos que garantiram que, em 2011 (para dar um exemplo encontrado em "Keeping the Peace: Conflict Resolution and Peaceful Societies Around the World", capítulo dez), 89% de 6.184 casos de conflitos civis e criminais chegassem a acordos entre as partes. 79% desses acordos foram honrados, mas os números são impressionantes. A ideia desses dispositivos é evitar uma abordagem punitiva e dependente de tribunais. Desde 1991, uma lei exige que todo município norueguês disponibilize gratuitamente um Konfliktrådet, de forma que os casos que chegam até esses "conselhos" muitas vezes partem da própria polícia quando não se sente capaz de resolver determinada situação. A contenção de conflitos e danos nesse modelo é também uma forma de evitar desgastes, soluções agressivas ou injustas, decisões que foquem meramente na punição e não tragam nenhuma reparação dos danos provocados pelo conflito, dentre outras coisas. Também se evita ao máximo desperdiçar recursos mentais, financeiros e temporais em tribunais.

3) JUSTIÇA RESTAURATIVA

A mediação de conflitos no Konfliktrådets é uma forma de Justiça Restaurativa (JR). Mas o que é isso? O fundamental desse modelo de justiça é a contraposição à punição e à retribuição, propondo a restituição/reparação/restauração como nova concepção-base da justiça. Isso significa entender os "crimes" e outras violações de códigos disciplinares como danos causados ao tecido social, às relações interpessoais, ao convívio, de tal forma que seriam os efeitos desses danos os objetos maiores da justiça. Não são poucas as sociedades que adotam uma forma ou outra de JR. Em geral, sociedades sem estado são conhecidas por adotarem esse tipo de alternativa na resolução de seus problemas (chamados "crimes" em nosso modelo de sociedade), mas, como visto no caso da Noruega, é possível fazer diferente sem mudar profundamente as instituições de um território. A mentalidade de contenção de danos é vital para que os conflitos sejam resolvidos e os prejuízos à sociedade sanados de forma menos desgastante e mais eficientes. Mas é preciso mais do que isso para colocar em prática uma variação de JR (falando em variações, é importante a abertura a diferentes tipos de JR, à experimentação, e ao aprendizado com erros).

Um exemplo de JR: o Povo Navajo escolhe uma pessoa respeitada por todas as partes envolvidas no conflito como "justa" e imparcial, e essa pessoa atua no sentido de restaurar a paz na comunidade. Uma pessoa mediadora pode ser procurada até mesmo por quem causou o dano à comunidade. Na lógica punitivista-estatal, toda atenção é voltada à resposta a ser dada para a pessoa que cometeu a ofensa e os problemas e danos causados à comunidade são ridiculamente negligenciados. Na lógica Navajo, busca-se reconectar a pessoa agressora ao resto da sociedade, restaurando seus laços com a mesma, e isso sem deixar a pessoa que sofreu mais com essa agressão sem o devido suporte psicológico e moral, de forma que ela possa se sentir segura e plena novamente. Quem cometeu a ofensa muitas vezes paga uma restituição (nalyeeh), uma oferta de valor simbólico e que seja compreendida como suficiente para que a harmonia social retorne. Narrativas sobre figuras ancestrais e o modo como elas resolviam seus conflitos são frequentemente fundamentais.

Deve-se ter em mente que dinâmicas restaurativas ao redor do mundo são responsáveis pela manutenção da reincidência em níveis baixíssimos, além da diminuição da "criminalidade", sem contar na já mencionada questão da contenção de danos e reparação eficiente e satisfatório dos prejuízos causados a comunidades. A inspiração para a GC deve ser a lógica restaurativa e as dinâmicas associadas devem ser estudadas e registradas para que não faltem recursos de aprendizado. Dado um eventual fracasso nessa forma de fazer as coisas, pouco restaria para a GC além de enviar recomendações e informações para a futura Comissão Julgadora. Esta deve respeitar o acúmulo e o trabalho feito pela GC antes de tomar qualquer decisão, tendo consciência de que só está agindo dentro do partido porque houve um fracasso. Cada pronunciamento da Comissão Julgadora deve nos envergonhar e motivar para que façamos melhor.

Dados esses eixos, ainda dois pontos me parecem fundamentais: o primeiro é a aplicação do item IV do art. 51 do estatuto, que determina que a Gestão de Crises faça relatórios periódicos "sobre sua atuação na mediação e gestão de conflitos e sobre o andamento das soluções adotadas". Não há muito mistério aqui sobre o motivo disso estar previsto em estatuto: A GC precisa atuar para evitar que coisas piores aconteçam ou que as coisas se encaminhem da pior forma, e isso depende de um trabalho constante de revisão, autocrítica, aprimoramento do trabalho e aprendizagem com erros. Ao lidar com relações humanas e conflitos dos mais variados tipos presentes nelas, a GC precisa rever sua atuação com frequência maior que outros cargos e isso faz parte de sua própria definição. E essa revisão não pode ser aplicada a partir de nenhuma fórmula, o que torna a escuta fundamental também para melhoria do trabalho da GC.

O segundo ponto é a organização da GC seguindo o molde de coordenação colegiada deliberado no I Encontro Sudeste e posteriormente adotado pela Secretaria Geral. A diferença nesse caso, seria ter um grupo de pessoas das diversas áreas jurídicas (nesse caso, de preferência de fora do GTJ, devido ao papel que este desempenha na Comissão Julgadora, e seguindo a ideia de evitar conflitos de interesses) e de saúde mental auxiliando o trabalho a GC, empenhadas em uma escuta compartilhada, de forma que as soluções para mediação de conflitos não precisem ser de responsabilidade exclusiva das pessoas que ocupam os cargos e possam ser compartilhadas de forma a estimular ainda mais a horizontalidade e a colaboratividade, assim como a aumentar a eficiência da GC e o seu potencial de aprimoramento. Também é fundamental que esse grupo auxiliar (Conselho de Crises?) tenha pessoas que tenham experiência em lidar com a maior diversidade de questões pertinentes a minorias e relações de poder desiguais. O ideal é que as pessoas ocupando cargos de GC sejam cada vez mais meros canais de transmissão do trabalho de um conselho de pessoas dedicadas de forma permanente ou ocasional à gestão de problemas, conflitos e crises. Por último, gostaria de sugerir um grupo de estudos e pesquisa sobre resolução de conflitos para que o trabalho de gestão de crises seja ocasionalmente fortalecido também em seus componentes teóricos.

OBSERVAÇÃO: o que estou propondo aqui não depende de alteração de estatuto. A ideia é pegar as atribuições da GC e dar uma fundamentação teórica e uma interpretação "oficial" para parte delas, determinado o foco das ações da GC e evitando ao máximo alguma de suas atribuições previstas (e não sua eliminação precoce do texto estatutário).

G

galdino Sun 5 Jun 2016 3:53PM

queridas pessoas associadas dos coletivos do sudeste, gostaria de saber se há consenso acerca do texto aqui apresentado (e anteriormente apresentado aqui, onde cês podem acompanhar a discussão que já rolou sobre a proposta), tanto quanto ao seu conteúdo quanto à ideia de que sirva como documento oficial de fundamentos da atuação cotidiana das pessoas trabalhando como mediadoras de conflitos (ou gestoras de "crise"), de forma que as representações futuras dos coletivos aqui mencionados possam ter um posicionamento já definido (não pela eternidade).

G

galdino Sun 5 Jun 2016 4:17PM

para que fique claro novamente: da mesma forma que a ideia é por essas coisas em prática sem precisar alterar estatuto, não há nada aqui que precise ou deva ser formatado em termos de regimento, lei, norma. o que está sendo proposto é um entendimento coletivo, sendo talvez o guia editorial do gtc o documento mais próximo disso, apesar deste envolver uma dimensão normativa mais pesada. enquanto esse entendimento for posto em movimento no cotidiano da gestão de crises, enquanto for reproduzido e aplicado como fundamento mesmo do que se faz, as gerações seguintes só poderão interromper o trabalho assim direcionado por meio de força, e lei nenhuma nos protegerá de qualquer coisa nesse sentido. futuramente, se quiserem transformar a gestão novamente em um braço inquisitório e punitivo, e não manter a mesma como um corpo de pessoas preocupadas em restaurar o partido enquanto coletividade dos prejuízos eventualmente causados por seus membros, não será norma ou regimento ou estatuto que impedirá esse acontecimento. só a força da ação radicalmente alternativa, direcionada à construção de um novo mundo em dissenso direto com relação ao nosso mundo, pode garantir a continuidade dela mesma a partir de seus vários frutos, tanto em termos de prática teórica quanto em termos de ação política, não cabendo à força da lei nada além de ser um modelo de algo que queremos superar.

G

galdino Sun 5 Jun 2016 4:33PM

além disso, como dito em conversa (com sr. Wilson) sobre como e em que ocasiões tais princípios teóricos poderiam ser aplicados na mediação de conflitos, o que está sendo proposto aqui simplesmente não é passível de transformação em norma sob a pena de distorcer a coisa de forma que fique irreconhecível. não como regulamentar quando a gestão de crises deve se declarar incapaz de mediar algo, quando deve passar adiante algum caso, quando deve se desviar dos princípios de sua atuação, quando deve ampliar ou restringir seu escopo, como deve tratar diferentes questões, como deve identificar casos que já desde o início não tem como serem tratados sob as perspectivas libertárias da justiça restaurativa, e por aí vai. muito menos podemos regular qual a pena para qualquer desvio da norma, porque não se trata de punitivismo. espero que entendam os motivos pelos quais nada aqui pode ser transformado em regimento, e que não acreditem em quem lhes apresentar algo disso sob tal forma. entendendo isso, acho que estaremos em sintonia.

AFD

antonio ferreira da costa Mon 6 Jun 2016 3:11PM

" A consciência Social - Nao e sem motivo que na Europa foi criada uma escola estruturada sobre o comportamento consciente do ser humano .Biswanger na Suíça, Viktor Frankl na Áustria, anteriormente Kierkegaard , procuravam novos caminhos chamados existenciais . De modo geral , visavam desenvolver ao máximo sentimento de responsabilidade perante a vida . Teoricamente estavam certos , porem , metodologicamente falhavam muito , dado o desprezo aos fatos inconscientes . A sociedade funciona exatamente como o ser humano , ela e imagem e semelhança da alma dos indivíduos, claro prevalecendo no controle os mais doentes e sociopatas , o que seria então uma sociedade normal : ,Para a sociologia , seria o grupo social mais comum ,, pela biologia , aquela que fosse coerente em suas aspirações e realizações . Para a psicanalise , a que tivesse a vida consciente predominando sobre os impulsos do Id ( instintos ) e do Superego ( censura e normas ) . Por isso mesmo a liberdade de se refletir amistosamente , sobre conflitos ajuda na responsabilidade do coletivo e no sentimento de pertencimento de construção do Ego social , " uma expressão já consagrada pelo povo e a que diz que determinado individuo e consciente de suas obrigações , sendo um passo decisivo , para o processo de desenvolvimento "( Livro a Psicanalise da Sociedade -N. Keppe -1976)